Com doença de Parkinson, chef comanda restaurante concorrido em Londres
Fergus Henderson é capaz de fazer pratos delicados com o nariz e o rabo dos animais e não perdeu a fome de viver, mesmo enfrentando problemas de saúde
Um sorriso de canto de boca ao mesmo tempo gracioso e irônico, como só os britânicos sabem dar, não deixa o semblante do chef Fergus Henderson. Na calçada de seu restaurante St. John, no bairro de Smithfield, em Londres, ele fuma um cigarro matinal e observa o vaivém dos táxis pretos e fornecedores de ingredientes. A paisagem movimentada em nada lembra a região “crua”, como ele mesmo define, de 21 anos atrás. “Praticamente víamos bolas de feno desfilando na rua, era muito vazio”, lembra. Foi quando o profissional, então um ex-aluno de arquitetura, e o sócio Trevor Gulliver decidiram transformar as paredes defumadas de uma antiga smoke house num endereço de cozinha inglesa.
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Hoje, a concorrida casa figura na lista das 100 melhores do mundo, segundo a revista Restaurant. Por trás dos óculos de aro redondo, no fundo dos olhos azuis, ele parece reconhecer sua parcela de responsabilidade na transformação da área – e na percepção de todo o mundo em relação à má afamada gastronomia do seu país. No ano passado, recebeu o prêmio The Diners Club Lifetime Achievement Award pelo conjunto de suas conquistas. Essa honraria já foi concedida a outros grandes, como Alain Ducasse, à frente de um império na França, Juan Mari Arzak, o primeiro espanhol a estampar no seu Arzak, em San Sebastián, as desejadas três estrelas, e Daniel Bouloud, do Daniel, de Nova York. “Fiquei orgulhoso, mas foi um pouco estranho ganhar. Deu uma ideia de término, e eu ainda tenho muita vida dentro de mim”, conta.
A frase adquire um toque agridoce quando se leva em conta o drama pessoal do chef, diagnosticado com a doença de Parkinson em 1998. Açougueiro habilidoso, viu suas mãos deixarem de responder a comandos precisos. “Facas começaram a ser um problema, não só para mim, mas para os outros ao meu redor.” Os movimentos involuntários foram em grande parte contornados por uma operação de estimulação profunda do cérebro realizada em 2005 pelo neurocirurgião Marwan Hariz, sempre citado com muita consideração por Henderson.
Ainda que os bons resultados do tratamento tenham ajudado, ele precisou mudar a rotina devido às limitações físicas. Como perdeu a agilidade necessária para a cozinha, cedeu lugar na boca do fogão a Chris Gillard, integrante da equipe de funcionários desde 2000. Mas não deixou o salão nem abandonou a tarefa da criação dos menus.
Impresso numa folha de papel sulfite, o cardápio muda diariamente. Não traz nenhum prato de apelo fácil – nada de salmão, frango ou filé-mignon. São as partes dos animais normalmente descartadas que interessam a Henderson. Rim, coração bovino, língua de cordeiro e orelha de porco podem parecer opções austeras, mas não na apresentação delicada e bem temperada proposta por ele. Em 1999, lançou o primeiro livro da série Noseto Tail Eating: A Kind of British Cooking, sem versão em português. Para elaborar pratos utilizando do nariz ao rabo dos animais, é preciso estar atento a sutilezas de texturas e sabores dos ingredientes.
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Assado e servido dentro do osso, o untuoso tutano, por exemplo, é acompanhado de torradas crocantes e um molho de salsinha que refresca o paladar. Para quem prefere um terreno mais conhecido, o welsh rarebit é um deleite capaz de contrariar todo senso comum que já ousou afirmar a má qualidade da comida inglesa. Trata-se de uma torrada tostada na manteiga, temperada com mostarda em pó e pimenta-caiena, coberta por uma mistura cremosa de cerveja Guinness e queijo cheddar maturado. Prová-la com algumas gotinhas de molho inglês está entre os hábitos semanais enraizados de Henderson.
Outras pequenas autoindulgências são uma fatia de bolo seco perfumado por sementes de erva-doce com uma taça de vinho madeira no meio da manhã, um almoço no clássico endereço de frutos do mar Sweetings, um trago de charuto e um jantar de massa feita por ele mesmo para a esposa, Margot, mãe de seus três filhos. De tempos em tempos, o chef gosta de repetir que “é preciso respeitar a comida”. Para ouvintes atentos, suas frases intercaladas por pausas, sorrisos de canto de boca e goles de vinho dizem muito mais: é preciso respeitar os bons momentos. Henderson está cheio de vida, e ele sabe aproveitá-la.