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“Para mim, pobre que não é de esquerda neste país ou é alienado ou é burro”, diz Mário Bortolotto

Prestes a completar 60 anos, o (ex) “bad boy” do teatro paulistano, do grupo Cemitério de Automóveis, revê sua carreira, fala de violência e política

Por Clayton Freitas
27 Maio 2022, 06h00
Mário Bortolotto é um homem branco idoso, de cabelos lisos e brancos. Ele usa um óculos de sol preto e uma jaqueta de couro. Está sentado em uma cadeira com o corpo inclinado para frente
Mário Bortolotto, no teatro: relação intensa com a cidade (Alexandre Battibugli/Veja SP)
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Talvez pela forte influência do universo beatnik, conteúdo polêmico das falas de seus personagens, ou ainda o autoproclamado temperamento arredio, Mário Bortolotto, 59 anos, já foi considerado o maior “bad boy” do teatro paulistano. Quem o conhece sabe que Marião nunca foi um lorde, porém não vocifera impropérios à toa. A não ser que você tenha a péssima ideia de mudar uma linha de alguma de suas peças.

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O ator, diretor, músico e escritor é autor de mais cinquenta textos de teatro, dez livros (entre crônicas, romances, peças e poesias), lançou três CDs com sua banda de blues- rock Saco de Ratos, e, às vésperas de entrar para o clube dos sexagenários, abriu na Bela Vista as portas da nova sede do Grupo Cemitério de Automóveis, trupe que completa quarenta anos. O espaço terá uma agenda intensa, que inclui montagem de peça inédita, remontagem de outras, exposições, shows e lançamento de livros, entre eles o título em que Bortolotto contará detalhes da época de seminarista em Londrina, onde nasceu.

O Cemitério de Automóveis existe há quarenta anos, a maior parte desse período em São Paulo. Seria possível tal longevidade fora daqui?

Sim, acredito que seria possível, talvez não com o mesmo ritmo de produção. Eu fundei o grupo em Londrina em 1982 e saí de lá em 1996. Foram catorze anos trabalhando na cidade e, é claro, viajando muito, principalmente participando de festivais de teatro pelo país. Mas, quando nos mudamos para São Paulo, o ritmo se intensificou, culminando nas duas grandes mostras que fizemos no Centro Cultural São Paulo (catorze peças em 2000 e 26 em 2002). Eu sempre mantive uma relação intensa com a cidade. Morei por duas vezes aqui (1981 e 1983) antes de me mudar definitivamente e costumava vir sempre à cidade para assistir a peças e filmes. Mas quando o Fauzi Arap me convidou para participar do espetáculo Frida Kahlo, em 1996, entendi que era o momento de ficar aqui definitivamente.

Você já foi vítima de violência (baleado em um assalto), o que quase lhe custou a vida. Como a criminalidade pode afetar as produções culturais?

Não curto esse surto de violência que parece estar se espalhando, talvez em decorrência de o país todo estar sob o jugo de um governo que dá a impressão de incentivar a violência em vez de desestimulá-la. E São Paulo, por ser a maior cidade do país, parece ficar ainda mais contaminada. Hoje está todo mundo com medo com essa onda de assaltos e violência. E o ambiente cultural sofre muito com isso. As pessoas ficam com medo de sair às ruas, o que é perfeitamente compreensível.

O que move você a recomeçar e abrir mais um espaço?

O fato de gostar muito do que faço. Durante a pandemia, por ficar impossibilitado de encontrar os amigos, de trabalhar com eles, com a rapaziada do teatro e com a banda de rock, fiquei me sentindo mesmo muito inútil. O que me salvou foi ficar escrevendo. Terminei o romance sobre os meus tempos de seminário. Deve sair no segundo semestre pela Editora Realejo de Santos e deve se chamar Nem o Céu, Nem o Inferno. Foi muito bom revisitar esse período da minha vida. Serviu inclusive para eu entender um pouco mais o sujeito que me tornei, com todos os meus grandes defeitos e algumas pequenas qualidades. Se eu continuar por aqui mais um tempo, espero permanecer trabalhando, escrevendo, fazendo teatro com os amigos, compondo e tocando com a nossa banda, a Saco de Ratos, e tentando ser um sujeito melhor, mais justo e menos intolerante. Eu tento me tornar um cara que eu possa me admirar. Já fiz muitas coisas das quais me arrependo e me envergonho. Quero me arrepender menos e me orgulhar mais. É o que me move.

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Durante muitos anos você preferiu não se posicionar politicamente, postura que mudou recentemente.

Eu não gosto de política. Eu gosto de poesia. Não há nada poético na política. É um mundo sujo. Mas eu sempre fui naturalmente de esquerda. Quando escrevi a minha peça À Meia-Noite um Solo de Sax na Minha Cabeça, em 1983, um dos personagens fala para o outro a fim de explicar suas convicções políticas: “Eu sou pobre. Para mim, pobre que não é de esquerda neste país, ou é alienado ou é burro”. Continuo pensando assim. Com a eleição do Lula eu me senti à vontade para não falar mais de política e poder me restringir apenas à poesia. Então nesse período me calei sobre o assunto, me negando inclusive a opinar a respeito. Com a ameaça da extrema direita tomar o poder, como aliás aconteceu, me senti obrigado a voltar a escrever e falar a respeito.

Se possível fosse, o que o sessentão falaria para o seminarista lá de Londrina? Seria algo do tipo “De agora em diante é o horror”?

Você citou uma frase do meu texto Homens, Santos e Desertores, que é quando o personagem mais velho diz para o garoto de maneira quase fatídica “De agora em diante é o horror”. Sim, eu diria exatamente isso. Não há por que ver o futuro com otimismo. Mas fazendo uma analogia com o futebol, eu diria que a partida tem noventa minutos. E, se acontecer de a gente não ser expulso ou substituído pelo treinador, devemos jogar o melhor possível enquanto estivermos em campo. Não estou falando em ganhar ou perder. Não me importo de perder. Estou falando de jogar bem, de sair com a cabeça erguida. É o que espero conseguir.

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O diretor Ademar Guerra disse certa vez que o Cemitério de Automóveis não era um grupo de teatro, mas uma gangue de rock and roll. Ainda é?

Nós ainda somos uma “gangue de rock and roll”. Nós ainda somos os garotos vomitando na sala. Quer dizer, agora somos velhos garotos, mas ainda nos olham com desconfiança e ficam se perguntando quando iremos vomitar no tapete. É certo que isso vai acontecer. Nós não vamos ganhar medalhas de bom comportamento.

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Revendo a sua trajetória, tem algo que faria diferente?

Teria trabalhado mais com o Fauzi Arap, por exemplo. Poderia ter feito outras, se não fosse o meu gênio intempestivo e minha fidelidade quase canina ao meu trabalho pessoal. Gostaria de ter sido menos intolerante e mais amável com pessoas com as quais me desentendi também por causa do meu temperamento arredio. Teria me dado ao direito de experimentar um pouco mais o que muitos conhecem como “felicidade”. Nunca me dei a esse direito. Gostaria de ter escrito mais livros de pulp-fiction, que é o que mais gosto de escrever.

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Publicado em VEJA São Paulo de 1 de junho de 2022, edição nº 2791

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