As personagens femininas nas esculturas de Flávio Cerqueira
Cinco obras suas estão em exposição virtual na Galeria Leme; artista já passou por Pinacoteca e Masp
![Escultura de Flávio Cerqueira em bronze com uma menina de coque no cabelo segurando dois copos em cada ouvido](https://gutenberg.vejasp.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/04/flavio-cerqueira.jpg?quality=70&strip=info&w=911&h=600&crop=1)
O artista paulista Flávio Cerqueira, de 37 anos, constrói sua fala em um fôlego só, enovelando episódios de sua vida. Esse jeito de estruturar o discurso, de algum modo, orienta sua produção, composta de esculturas de meninos, meninas e mulheres, em bronze. “Eu conto a história do meu pessoal, de gente que esbarrou comigo”, explica Cerqueira, que traz ainda dois pilares da sua pesquisa artística. “Há também narrativas históricas, que abordam temas como educação e racismo, e ficcionais, coisas que eu simplesmente crio, sem ter referência com a realidade”, conta.
![Flávio Cerqueira_Atalho para a Liberdade, 2019_Electrostatic paint on bronze and steel wires_200 x 50 x 50 cm_Photo Romulo Fialdini_Detail 13.jpg Escultura de Flávio Cerqueira em bronze com uma menina de pendurada no teto da Galeria Leme por três bexigas](https://gutenberg.vejasp.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/04/Fla%CC%81vio-Cerqueira_Atalho-para-a-Liberdade-2019_Electrostatic-paint-on-bronze-and-steel-wires_200-x-50-x-50-cm_Photo-Romulo-Fialdini_Detail-13.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Cinco obras suas, como Atalho para a Liberdade (acima; 2019), estão em cartaz na Galeria Leme, na exposição virtual Um Mundo de Cada Vez. “A maioria dos meus personagens são homens. Minha mãe via isso e falava: ‘Quando você vai fazer uma menina?’. Fiquei com essa pergunta na cabeça e, nesta mostra, as esculturas são todas de mulheres.” Para entender a mudança, é preciso colocar em foco dona Floricélia Maria, matriarca baiana que veio para São Paulo com o primogênito na barriga.
![Flávio Cerqueira_Um mundo de cada vez, 2021_Exhibition view_Photo Romulo Fialdini_View 35.jpg O artista Flávio Cerqueira posa ao lado de sua escultura, que mostra duas crianças em bronze, um no ombro do outro, pintando uma parede](https://gutenberg.vejasp.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/04/Fla%CC%81vio-Cerqueira_Um-mundo-de-cada-vez-2021_Exhibition-view_Photo-Romulo-Fialdini_View-35.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
“Fiquei a vida toda sendo chamado de ‘bicha’ pelos meus tios, porque minha mãe trabalhava o dia inteiro e eu tinha de cozinhar, lavar as roupas lá em casa”, recorda ele, que dá outra dimensão para essa questão quando fala de onde morava: “Eu cresci no bairro dos Pimentas, em Guarulhos, que é muito perigoso. Lá, ter pai é um luxo. O meu morreu de câncer, mas os outros pais ou sumiram ou tinham sido presos. A maior força das periferias são as mães, as mulheres”.
![Flávio Cerqueira_Cansei de aceitar assim, 2020_Bronze and stop sign_260 x 60 x 36 cm_Photo Romulo Fialdini.jpg Escultura de Flávio Cerqueira em bronze com uma menina com uma placa STOP (de trânsito) na cabeça](https://gutenberg.vejasp.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/04/Fla%CC%81vio-Cerqueira_Cansei-de-aceitar-assim-2020_Bronze-and-stop-sign_260-x-60-x-36-cm_Photo-Romulo-Fialdini.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
As obras de Cerqueira também estão nos acervos de museus. Amnésia (2015), que traz um garoto negro derrubando sobre si um balde de tinta branca, integra a coleção do Masp. Antes que Eu Me Esqueça (2013), protagonizada por um menino branco, com traços corporais relacionados à ascendência africana, foi adquirida pela Pinacoteca. De forma curiosa, os dois trabalhos parecem cenas de um mesmo filme. Se o primeiro garoto está em vias de se embranquecer, deixando a história de seus ancestrais de lado, o segundo parece já ter realizado essa operação.
![Amnesia01©RomuloFialdini Escultura de Flávio Cerqueira em bronze de um menino jogando tinta branca em sua cabeça](https://gutenberg.vejasp.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/04/Amnesia01%C2%A9RomuloFialdini.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
O tom alvo de sua pele, por sua vez, precisa ser examinado com atenção. A textura com ar industrial sugere a artificialidade do processo, que não se dá propriamente na epiderme, mas no vestir, falar, no encrespar ou não do cabelo. Ao final, parece sobrar dessa necessidade de adaptação o olhar do personagem, um tanto perdido, diante do espelho.
![Levi Fanan_Pinacoteca.jpg Vários quadros dispostos em uma parede branca, um deles é um espelho e da para ver o fotógrafo tirando a foto](https://gutenberg.vejasp.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/04/Levi-Fanan_Pinacoteca.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Mesmo com a viabilização por financiamento coletivo de um livro, que cataloga sua produção entre 2009 e 2019, com participação em exposições em países como Portugal, África do Sul e Japão, e com obras alcançando valores de até 150 000 reais, Cerqueira mantém os pés no chão e descarta a capa de herói: “Sou dedicado, ‘sangue nos zói’, mas não cheguei aqui sozinho. Tive a ajuda de muitas pessoas”. Uma delas foi a também artista Nazareth Pacheco, que o conheceu nos anos 2000, quando ele dividia sua vida entre a criação das esculturas e o trabalho de montagem de exposições na galeria paulistana Casa Triângulo.
![Flávio Cerqueira_Para dar nomes as coisas, 2021_Bronze_140_Photo Romulo Fialdini.jpg Escultura de Flávio Cerqueira em bronze de um menino observando em uma luneta](https://gutenberg.vejasp.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/04/Fla%CC%81vio-Cerqueira_Para-dar-nomes-as-coisas-2021_Bronze_140_Photo-Romulo-Fialdini.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
“Desde o início, via-se que o Flávio ia além do saber fazer, ele sempre incluía questões relacionadas à identidade, à memória”, recorda ela. Hoje, quinze anos depois, Nazareth ainda o acompanha, em tom de admiração: “Ele está indo muito bem. Meu conselho agora é continuar, seguir firme”.
![Créditos_André_Ricci Livro chamado Flávio Cerqueira. Capa mostra uma obra dele de uma escultura um garoto em bronze](https://gutenberg.vejasp.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/04/Cre%CC%81ditos_Andre%CC%81_Ricci.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
+Assine a Vejinha a partir de 6,90.
Publicado em VEJA São Paulo de 14 de abril de 2021, edição nº 2733