O valor do silêncio
Com cidades cada vez mais barulhentas, a ausência de ruído se torna um objeto de desejo — e, mais do que nunca, uma commodity
Planejamento urbano mora em Barcelona desde que, em meados de 1850, o arquiteto Ildelfons Cerdà projetou os quarteirões simétricos do bairro do Eixample para facilitar a circulação das pessoas. Cento e cinquenta anos depois, uma nova revolução se concretizou na capital catalã. Desta vez, para permitir o sono dos locais. O asfalto das vias da segunda maior cidade da Espanha foi substituído para reduzir em 50% o ruído do atrito dos pneus com o pavimento. No cotidiano, isso significa que um morador de Eixample passou a ouvir até o “pipipi” da caixa registradora do supermercado do outro lado da rua de sua casa, apesar do trânsito. Barcelona é hoje campeã em ruas revestidas de material à base de pneus reciclados — um terço do território. Iniciativas como esse investimento, de mais de 35 milhões de euros, indicam que o dia de combater o barulho como se combate a peste bubônica, uma previsão do infectologista alemão Robert Koch ao ganhar o Nobel de Medicina, em 1905, já chegou. E, com ele, a elevação do silêncio à categoria de mercadoria escassa e valiosa.
“Na medida em que vivemos em metrópoles barulhentas, com um número cada vez maior de dispositivos tecnológicos portáteis utilizados indiscriminadamente, o silêncio se torna uma oportunidade de negócio”, diz Milton Pedraza, CEO do Luxury Institute, organização de Nova York que estuda as tendências do mercado do luxo. Fundador da marca de eletrônicos que leva seu sobrenome, Amar Bose é uma das pessoas que anteviram a possibilidade. Ele desenvolveu fones de ouvido próprios para abafar o ruído, testados pelos pilotos de caça da Força Aérea dos Estados Unidos. O modelo QuietComfort 15 Noise Cancelling funciona hoje tanto para civis que desejam ouvir música sem o zunzum do ambiente quanto para os que preferem escutar apenas os próprios pensamentos (no Brasil, custa 1 900 reais). “O silêncio é um recurso natural em extinção”, diz Gordon Hempton, autor de One Square Inch of Silence (em tradução livre, “Um centímetro quadrado de silêncio”). O americano se especializou em captação de sons da natureza, utilizados em documentários dos canais National Geographic, videogames da Microsoft e trilhas que lhe renderam um Emmy Award. Em 1984, o ecologista tomou como amostra o estado de Washington e identificou 21 lugares nos quais era possível se ausentar das ondas sonoras por pelo menos quinze minutos. Recentemente, contabilizou três.
A falta de espaços ao ar livre onde descansar a audição está longe de ser exclusividade americana. Divulgado no ano passado, um estudo da Universidade de São Paulo constatou, tomando como base o bairro de Pinheiros, que 45% dos quarenta pontos analisados apresentavam 15 decibéis acima do ideal. Segundo a Organização Mundial de Saúde, a zona de conforto se situa em 50 decibéis durante o dia e 30 à noite. Entre os males atribuídos à exposição ao excesso de barulho estão a insônia crônica, doenças cardiovasculares e distúrbios psicológicos, que podem interferir no comportamento social e no desempenho no trabalho e nos estudos. Não à toa, cidades como Helsinque e Nova York criam oásis públicos em que o silêncio é uma ordem. Na capital finlandesa, uma capela de madeira e concreto de 352 metros quadrados foi aberta há seis meses, sem fins religiosos, na agitada Praça Narinkka: o único objetivo é oferecer um espaço onde o silêncio é sagrado, das 7 da manhã às 8 da noite nos dias de semana e das 10 às 18 horas no fim de semana. No ano passado, oito Quiet Zones (zonas silenciosas) foram implantadas no Central Park.
O valor do silêncio agora chega aos voos. Com vinte companhias aéreas permitindo o uso de celulares em pleno ar, o movimento contrário já se nota. A partir de fevereiro, a AirAsia transformará o espaço entre as filas 7 e 14 num aárea onde não é permitido conversar em voz alta e crianças menores de 12 anos são vetadas. Para ter acesso ao éden aéreo, basta pagar a taxa de 12 dólares. A iniciativa acompanha uma tendência consolidada em terra. Em 1999, o primeiro Quiet Car da companhia nacional de trens americanos (Amtrak) foi inaugurado na linha entre Nova York e Filadélfia. Nesse vagão, não é permitido falar ao telefone nem ouvir música sem auriculares. Caso insistam em conversar, os passageiros devem, no máximo, sussurrar. “Foi uma reivindicação de nossos clientes frequentes, que buscavam uma pausa da sociedade ultraconectada”, conta Cliff Cole, porta-voz da Amtrak. Hoje, seis linhas contam com alas silenciosas.
De olho na necessidade de se desconectar, um número crescente de hotéis vem apostando naquilo que chama de “detox digital”. Eles propõem o oposto de dezenas de canais via satélite e conexão wi-fi entre os serviços. O departamento de turismo do arquipélago caribenho de St. Vincent e Grenadines vem promovendo as férias off-line entre os atrativos. No Petit St. Vincent Resort, não há telefone fixo, conexão à internet nem televisão nos 22 cottages, pelos quais cobra a partir de 1 100 dólares a noite. Caso deseje ser atendido no quarto, o hóspede deve hastear uma pequena bandeira amarela diante de sua porta. Menos radicais, hotéis ao redor do planeta oferecem a proposta “unplugged” como serviço opcional, caso do Teton Mountain Lodge & Spa.
Nada, porém, parece mais eficiente do que está por vir. Em fase avançada de testes, o Bloon é um balão desenvolvido pela empresa espanhola zero2infinity, que pretende levar quatro passageiros por vez a 36 quilômetros de altura (o triplo da altitude de cruzeiro de um avião). Do alto, eles poderão enxergar a Terra do ponto de vista dos astronautas durante três horas e com uma diferença: estarão a bordo de uma máquina que se define como a mais silenciosa do mundo. Segundo a empresa, os primeiros passageiros devem decolar rumo à estratosfera no ano que vem. Aos interessados em lembrar-se da paz que pode haver no silêncio, como escreveu Max Ehrmann no poema Desiderata, um aviso: as reservas já estão abertas e a passagem custa 110 000 euros por pessoa.