Houve um ano em que resolvi fazer eu mesmo um peru para o almoço natalino, com a receita da minha saudosa vovó Ida. Não sei o que deu em mim, um arroubo de espírito natalino, vai ver. Discute-se em família se aquele peru foi ou não uma ideia boa. Há controvérsias. As repercussões são sentidas lá em casa até hoje. Não sou grande cozinheiro, longe disso, mas me viro. Digamos que tenho noção. Gosto de ler os livros do cozinheiro Anthony Bourdain e de assistir aos seus programas de televisão. Morei durante anos nos Estados Unidos em repúblicas de estudantes em que era obrigatório preparar refeições para os colegas. Aprendi o básico. Mas é só. Não passa disso. Os republicanos eram famintos e duros, digase, e não dispunham de outra opção. Comiam o que era levado à mesa.
Pedi uma década atrás a receita do peru à minha mãe, que a enviou via fax. Está guardada em um caderno próximo às latas de tomates italianos. O original americano traz anotações nas margens, como, por exemplo, “2001 — acrescentamos dois copos de vinho branco (muito bom!)”, ou “1994, meio quilo de linguiça”, de onde se pode concluir que a receita é robusta.
Minha avó Ida, esta, sim, era uma cozinheira de mão-cheia, capaz de criações originais e pratos memoráveis. O bom do seu peru são a farofa (stuffing) e o molho (gravy). Tanto uma como o outro trazem gostos exóticos para o paladar brasileiro, em geral, e mesmo para o paulistano, acostumado hoje com culinárias do mundo todo. A farofa é feita à base de sálvia e pão de fôrma velho.
O molho prima pelo colesterol mesmo. Naquele ano comprei um peru grande, o maior que tinha em um supermercado da Rua Teodoro Sampaio: 11 quilos, se a memória não me falha. Sem trocadilho, juro, americano que se preza é ligado no tamanho da ave. Faz parte das discussões à mesa no Natal. Nos Estados Unidos são comuns frases como: “Optei por um peru menor neste ano…”. Se você duvida, olhe no Facebook neste Natal. Vai ver fotos, ler relatórios, o diabo.
Brasileiro liga bem menos para esse prato. Daí o meu empenho. Queria provar que não é uma carne seca e sem graça, como se suspeita aqui. A receita pede que se passe manteiga em momentos diversos do cozimento. Em uma dessas ocasiões a ave escapou do meu controle, destruiu as prateleiras do forno e pulou para o chão, onde se seguiu uma luta nos moldes do MMA. Ganhei por pontos, apesar da temperatura do animal e da manteiga, mas o estrago foi grande no entorno. Queimei-me inteiro. A sorte foi que quase ninguém viu.
No fim, o peru, a farofa e o molho fizeram o maior sucesso. É o que me disseram, ao menos. Todo ano tento trocar o cardápio. Ninguém deixa. O peru da vovó Ida já foi incorporado às tradições natalinas da minha casa. É obrigatório. O motivo, estive pensando, é menos a qualidade da comida, que varia de ano a ano, do que a história dela. Uma boa festa vinga em função de sua narrativa. É o caso do 14 de Julho na França, do 4 de Julho nos Estados Unidos, do Carnaval no Brasil e do Papai Noel em um bom pedaço do mundo. O peru traz consigo a história da minha família, do Velho Oeste americano até São Paulo. É por isso que vingou, desconfio.
É por esse mesmo motivo que nunca se adequou a roupa de Papai Noel aos trópicos. Desde que vim para São Paulo, na década de 80, ouço dizer que a decoração natalina, com neve, casacos de frio, renas e pinheiros, não faz sentido aqui em pleno verão. Alguns chegam a insinuar que não passa de imposição imperialista.
Mas nós sabemos que não é isso. Papai Noel precisa mesmo daquela roupa, porque onde ele mora faz muito frio.
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