Nina Horta presenteia o leitor com um banquete de palavras
Antes de começar a ler O Frango Ensopado da Minha Mãe, estiquei a mão em direção à estante acima do computador. Continua ali diante dos meus olhos Não É Sopa, o primeiro livro de Nina Horta, tão essencial quanto este segundo. Nele, a dedicatória data de 20 de janeiro de 1996. No texto carinhoso, a […]
Antes de começar a ler O Frango Ensopado da Minha Mãe, estiquei a mão em direção à estante acima do computador. Continua ali diante dos meus olhos Não É Sopa, o primeiro livro de Nina Horta, tão essencial quanto este segundo. Nele, a dedicatória data de 20 de janeiro de 1996. No texto carinhoso, a autora diz “Como gostei de conhecer você que antes era uma voz lá no fundo do telefone!”.
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Antes de me encontrar com Nina pela primeira vez, fiz um par de matérias nas quais ela foi uma das minhas fontes. Nina me atendeu com paciência para responder um questionário imenso e cheio de detalhes. Recentemente, ela foi nossa entrevistada na bancada do programa Bons de Garfo levado por veja.com pela internet. Nina lembrou da última das entrevistas, riu muito e disse que antes ninguém pediu tantos detalhes para escrever um texto.
Nina é maior cronista de comida do Brasil. Tem a mesma dimensão que a jornalista Elizabeth David teve para os britânicos e a mesma importância de M.F.K. Fisher os americanos. Mas esqueça as receitas. Elas até escorregam por uma ou outra página, embora sejam menos presentes do que em Não É Sopa. O Frango Ensopado da Minha Mãe dá fome, mas não dessa de entrar na cozinha e se atirar sobre o fogão. Estimula o paladar a devorar um banquete de palavras.
A compilação de textos de Nina trata de prazeres mais amplos e o maior deles está na relação entre comida e memória. São aromas que invadem o nariz, cores de pratos e ingredientes, gostos inusitados ou comezinhos — os mais simples são justamente aqueles que melhor representam o que Nina cunhou como “comida de alma”. A comida que nos reconforta e faz com que o passado seja sempre presente. Daí a atemporalidade dos escritos dessa autora sensível, inimitável.
Logo numa das primeiras crônicas, intitulada “herdeira”, Nina se assombra : “Fico abismada de tanta coisa que não me lembro. E de tanta bobeira que me lembro com perfeição.” A memória da cronista é um prodígio. É justamente essa a matéria-prima simples que dá tanta graça a tal livro-franguinho: o trivial. Nina tira da desimportância a mesa posta, não a do restaurante, mas a doméstica, do café da manhã, do almoço, do lanche da tarde, de jantares intermináveis. Sente-se o perfume das goiabas e frutas, dos pescados frescos com sua maresia, dos frangos feitos por sua mãe, senhora-terror dos galinheiros que há muito foram banidos da metrópole.
No caderno de viagens que se forma quase ao final, chamam mais a atenção não as esticadas internacionais a restaurantes estrelados, mas as escapadas para sua querida Paraty. É lá que Nina tem uma casa rústica construída com material de demolição do século XIX retirado de uma cidade que submergiu por causa de uma barragem. Ela nos relata uma Paraty grávida e pródiga, de uma prenhez de verde, de mar, de peixe frito.
Alguns assuntos, explorados por ela desde que começou a escrever em 1987, parecem indigestos aos mais sensíveis. Saíram de moda e de quase todos os cardápios iguarias como as vísceras, com as quais se faz uma dobradinha à moda de Caen de deixar saudade. E tem os miolos, deliciosos, em especial empanados à moda lusa. É justamente nessa passagem sobre miolos que ela nos faz lembrar Hannibal Lecter, o canibal dos silêncios dos inocentes, anti-herói que tira de suas vítimas fígados, cérebros e os devora sem cerimônia com um bom tinto.
Das crônicas ligadas ao ofício de banqueteira – ela foi dona por quase trinta anos de um dos bufês mais concorridos da cidade, o extinto Ginger, ao qual, pouco antes de fechar, tive a felicidade de encomendar uma das minhas festas de aniversário–, a que mais me encanta chama-se empratados. É sobre a nouvelle cuisine que difundiu mundo afora a ideia de fazer receitas lindas e oferecidas no prato. Desde que a moda pegou, tudo vem montado da cozinha. PF, que era comida de trabalhador sem posses e sem pose, virou chique. E não é que um cliente resolveu enlouquecer Nina em um único e evento e pedir nada menos que 1.000 refeições empratadas, 1.000 pfs chiques?
Nina se despede com ternura daqueles que já partiram nos quatro últimos textos. Dá adeus a amigas e a leitores fieis. São seus personagens, confitados em afeto. Alguns mais íntimos, amigos de uma vida inteira; outros, colegas virtuais e de muitas conversas trocadas por e-mail.
O Frango Ensopado da Minha Mãe traz ótimas histórias de comida ou não. Essas histórias que são pretexto para ligar Nina aos leitores que a acompanhavam semanalmente na Folha de S. Paulo e agora seguem seus passos no blog com seu nome e no qual ela publica freneticamente para nossa sorte. Se você nunca leu qualquer texto da Nina, tanto melhor. O prazer será ainda maior porque terá sabor de descoberta.
Ps: Nina, prometa apenas não esperar mais 20 anos para publicar outro livro. É injusto demorar tanto.
Caderno de receitas:
+ Dadinhos de tapioca, do Mocotó
+ Il vero fettuccine Alfredo di Roma
+ Bolo brigadeiro sem leite condensado, Monte Líbano
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