“Sofremos racismo diversas vezes juntos”
Juliana Souza conta que ela e seu companheiro, Jálisson Mendes, têm mesmas origens e profissão, além de compartilharem ativismo no movimento negro
“São poucos os casais negros que têm a oportunidade de falar sobre relacionamento. Nossas histórias não são contadas ou são narradas de maneira enviesada. Normalmente estamos estampados nas páginas policiais.
Eu nasci na Bahia e me mudei com minha mãe para São Paulo, com destino à favela de Santa Rita, na periferia de Itapevi. Cinco anos antes, meu namorado, Jálisson, 34, nascia no mesmo hospital e fazia o mesmo percurso, mas rumo à favela de Heliópolis.
Sempre gostei de estudar e tive oportunidade de cursar direito. Acordava às 4 horas da manhã para chegar a tempo ao cursinho popular da USP, que começava às 7 horas, e voltava para casa quase à 1 hora da manhã. Consegui entrar na PUC com bolsa integral do ProUni. Acabei contratada para a defesa no caso de racismo da Títi, filha do ator Bruno Gagliasso e da apresentadora Giovanna Ewbank, quando a menininha foi atacada na internet por causa da pele. Aos 12 anos, um garoto me disse que faltava cabelo na minha cabeça porque minha mãe usava para lavar panela. Todas nós já fomos a Títi um dia.
Muitos amigos ou pessoas próximas de Jálisson morreram ou foram presos, destino que a sociedade dá a muitos homens negros. Mas ele foi salvo desse caminho por causa dos projetos sociais que existiam na comunidade. Ele preparou adolescentes para o mercado de trabalho, mostrando como se comportar em entrevistas de emprego e ensinou a montar currículos. Hoje é educador social. Nós dois conquistamos a ascensão social, então, sentimos que temos a responsabilidade de voltar para onde viemos e retribuir de alguma maneira.
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Encontrei o Jálisson em uma manifestação contra a chacina de Costa Barros (região da Zona Norte do Rio de Janeiro onde cinco meninos foram assassinados por policiais militares em 2015), no vão do Masp. Queria conhecer mais a fundo as pessoas do ato. Trocar experiências políticas. Os organizadores do protesto criaram um grupo no Facebook e de lá eu e ele nos adicionamos. Eu não tinha pretensão de ter um relacionamento. Ele confessa que gostou de mim desde a primeira vez que me viu. Em um mês saímos diversas vezes. Fomos a saraus, batalhas de rima, bibliotecas, reuniões políticas, até ele me beijar no Parque Ibirapuera.
Ele era mais engajado em movimentos negros, e eu ficava encantada com as nossas conversas. Meu interesse por ele foi despertando. Era fim do ano de 2015 e eu havia comprado uma passagem para passar o réveillon no Rio de Janeiro. Não queria ir sozinha. Ele cancelou tudo para ir comigo, e realizei meu sonho de visitar a escola de samba Mangueira. Na volta, ele foi até minha casa e se ajoelhou com uma aliança na mão.
Assim como eu, ele embarcou no direito. Buscamos aumentar o número de advogados negros no mercado de trabalho para representar nossa comunidade. Perdi a conta das vezes em que sofremos racismo juntos. Uma mulher branca já nos empurrou em um show e apontou para a pele dela, como se fosse superior à nossa. Nós a denunciamos, mas ela fugiu do local. Outra vez estávamos em um carro levando nossas mães ao hospital e fomos parados por uma viatura da polícia, que afirmou que nossa atitude era “suspeita” por termos entrado “bruscamente” no pedágio.
Eu admiro a habilidade do Jálisson de saber ouvir e se pôr no lugar do outro. As relações hoje estão superficiais e não há interesse verdadeiro sobre o parceiro. Ele é um homem que, apesar de ter nascido em uma sociedade machista, está aberto a transformações.
Daqui a dois ou três anos, quando estivermos emocionalmente e financeiramente estáveis, pretendemos nos casar e ter filhos. Criar uma pessoa é muita responsabilidade, ainda mais sabendo que sofrerá racismo, mas estamos cada vez mais preparados para lidar com isso.”
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Publicado em VEJA São Paulo de 24 de março de 2021, edição nº 2730