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Recomendo o isolamento social e sou xingado, diz médico infectologista

No Diário dos Sem-Quarentena, Jamal Suleiman, no Instituto Emílio Ribas desde 1984, conta que nunca presenciou uma mudança tão grande no hospital como agora

Por Jamal Suleiman, 60 anos em depoimento a Miguel Barbieri Jr.
Atualizado em 22 Maio 2020, 17h24 - Publicado em 22 Maio 2020, 06h00
 (Rogério Pallatta/Veja SP)
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“Entrei no Instituto Emílio Ribas como médico infectologista em 1984, no período que coincide com os primeiros casos de HIV-aids no Brasil. Passei por outros tipos de epidemia ou surtos, como sarampo, meningite e leptospirose. A estrutura do hospital teve muitas transformações ao longo dos anos, mas, agora, foi a maior que eu vi em quatro décadas. Nunca presenciei uma doença evoluir tão rápido. E há uma agravante: se você deixa os trabalhadores do grupo de risco num ambiente vulnerável, como o hospital, o risco de transmissão cresce. Tivemos, portanto, uma redução de funcionários para atender os doentes e, por isso, nossa carga de trabalho aumentou. Isso significa um ganho de stress.

A Covid-19 tem uma característica muito ruim: o paciente pode estar relativamente estável de manhã e, à tarde, precisar ser intubado e ir para a UTI. É uma doença que não escolhe cor, sexo, idade, gênero, cabe a todos os seres humanos. E o pior é que não sabemos como será a evolução de cada caso, o que torna o dia a dia ainda mais angustiante. Outras situações que presencio: a de colegas que sucumbiram à enfermidade e estão internados e a de famílias inteiras que foram afetadas pelo novo coronavírus. Parece um efeito dominó, em que, uma a uma, as pecinhas vão tombando. Não bastasse toda a pesada carga hospitalar, há as tarefas domésticas, como fazer faxina e preparar as refeições, já que os restaurantes estão fechados e almoço no hospital.

Minha filha caçula foi ficar com o namorado durante a pandemia. Ele se responsabilizou pelas compras no mercado e, numa saída, se contaminou, mas conseguiu se recuperar bem. Na segunda-feira 18, tive de internar minha filha, também com diagnóstico de Covid-19 e com comprometimento pulmonar. Ela tem 32 anos e está num hospital particular porque possui convênio médico, o que a maioria da população brasileira não tem. E, embora eu trabalhe num hospital público, não acho que ela deva ocupar um leito, já que outros, sem as mesmas condições financeiras, vão precisar dele. Sinto falta da família. Minha neta, filha da minha primogênita, nasceu em fevereiro e, desde março, não tenho mais contato presencial com elas, só por chamadas de vídeo. Numa pandemia como esta, devemos olhar não só para nós mesmos, mas também para o próximo.

Ao mesmo tempo, vivo uma situação completamente maluca: presencio carreatas e buzinaços na porta de hospitais do Brasil, mais especificamente na cidade de São Paulo, de pessoas que não acreditam na infecção. No mundo inteiro, os cidadãos iam para as sacadas de seu apartamento para aplaudir as equipes de saúde e promoveram espetáculos belíssimos de solidariedade.

Não consigo entender o comportamento dos negacionistas, que ouvem as indicações daquele que eles classificam de “mito” e desqualificam as orientações de isolamento social feitas pelos profissionais da área, como se a pandemia fosse uma criação da mídia.

Passei a dar entrevistas porque, desde os primeiros casos, assumi a posição de que a população tem o direito de obter as informações mais claras. Mas essa visibilidade me trouxe prejuízo. Tenho minhas redes sociais abertas, não só para amigos — e foi aí que comecei a receber mensagens privadas de pessoas me atacando. É uma gente que eu nunca vi na vida e me xinga de vários palavrões, só porque eu proponho a única estratégia razoável e eficaz de combate à transmissão, que é o isolamento. Mas também recebo carinhosas mensagens de incentivo daqueles que se sentem representados e protegidos.

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Eu e minha esposa, Grace, que também é infectologista do Emílio Ribas, saímos de casa todos os dias e não sabemos se vamos voltar porque sempre tem alguém que pode precisar da gente. Até brinco dizendo que não vejo a hora de entrar em quarentena. Mas não temos essa possibilidade, pois nosso trabalho é o da linha de frente. Nós, médicos, não somos heróis. Não há heroísmo, e sim responsabilidade e comprometimento. O possível, todo mundo faz. Devemos fazer o impossível para promover o bem-estar de todos. E, fazendo isso, tenho certeza de que dormimos com a cabeça tranquila.”

Publicado em VEJA SÃO PAULO de 27 de maio de 2020, edição nº 2688.

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