“Vamos ouvir a ciência”, diz cardeal-arcebispo de São Paulo
Dom Odilo Scherer afirma que políticos têm de dar o bom exemplo de respeito às medidas e que entende as pessoas que questionam a fé em momentos como o atual
Um ano após o início da pandemia, diante do agravamento dos índices epidemiológicos e com as igrejas sem missa, é possível ocorrer a busca ideal por conforto espiritual por meio de celebrações virtuais?
O que conseguimos oferecer não é o ideal, em vista das muitas restrições que o atual momento da crise sanitária impõe a todos. Nós oferecemos o que é possível, nas condições que enfrentamos. Mesmo não sendo o ideal, as pessoas esperam e buscam o conforto da fé e respostas para sua vida durante este momento grave da pandemia.
A Páscoa, um dos principais acontecimentos da Igreja Católica, faz refletir sobre alguns conceitos, como ressurgimento, transformação e esperança. Como renovar essas questões em um momento de grande comoção coletiva?
As celebrações da Páscoa constituem o centro da liturgia da Igreja Católica e se referem aos sofrimentos e à morte violenta de Jesus na cruz, sua sepultura e ressurreição ao terceiro dia. A Páscoa fala das contradições da vida, da história e dos comportamentos humanos e do amor infinito de Deus, que supera as fraquezas e a maldade humana. A Páscoa fala de superação e da vida que triunfa sobre a morte. A mensagem da Páscoa é mais que oportuna para o nosso tempo, marcado por angústia, medo, dor e morte. Devemos manter firme a esperança e continuar a lutar. Deus não nos abandona.
Em situações como a que vivemos, com grande quantidade de mortes, muitas pessoas fazem contestações e questionamentos sobre as religiões e sobre a existência de Deus. Qual recado, conselho ou conforto o senhor passaria a essas pessoas?
É compreensível que, no meio da angústia e da dor, as pessoas se questionem sobre Deus, a fé e a religião. Ao mesmo tempo, essas situações oferecem a ocasião para um encontro pessoal e profundo com Deus e para uma experiência religiosa marcante. A religião não isenta da dor e das contingências próprias da condição humana, nem acaba com a morte; mas ela lhes dá um sentido, marcado pela esperança e pela certeza de que nossa fragilidade e limitação são amparadas por Alguém, que nos dá forças, nos sustenta e não nos deixa cair no vazio da existência.
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Junto com o agravamento da pandemia, neste ano vieram também o da fome e o da pobreza. Ao mesmo tempo, as doações foram caindo, tanto de empresas quanto da sociedade civil. Foi uma sensação de que o pior da pandemia já havia passado ou mesmo quem doava perdeu o poder de compra?
A crise econômica no meio da população também está se agravando e a fome vai chegando para muitos. Houve certo cansaço nas mobilizações solidárias e as instituições e iniciativas de ajuda ficaram com pouca capacidade de auxílio. É hora de unir forças novamente.
A Igreja Católica no mundo todo sofreu e sofre impactos econômicos significativos pela queda de doações e de receitas obtidas com aluguéis. Qual o impacto da crise nas contas da Arquidiocese de São Paulo desde março do ano passado?
As entradas diminuíram e cortamos as despesas onde é possível. As despesas fixas, porém, não podem ser cortadas. Seguimos em frente, contando com a generosidade do povo católico e a Providência de Deus. Desde abril de 2020, na Arquidiocese de São Paulo, tivemos um corte de 40% nas côngruas (renda recebida pelos religiosos para seu sustento) mensais de todos os clérigos e isso perdura até o momento atual, sem previsão de normalização.
“As críticas dirigidas ao padre Julio Lancellotti são dirigidas acima de tudo aos pobres”
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Enquanto a pandemia cresce, algumas autoridades e lideranças políticas insistem em se posicionar contra medidas tão importantes quanto básicas, como o distanciamento social e até o uso de máscara. O que o senhor diria a essas pessoas?
É uma grande pena que isso esteja acontecendo! Vamos ouvir a ciência e usar o bom senso! Todos temos nossa parte de responsabilidade na promoção de medidas que possam ajudar a controlar e a superar a pandemia, quanto antes. E as autoridades, mais ainda: elas têm o dever de zelar pelas políticas públicas de saúde, não apenas com palavras e com políticas adequadas, mas também com o bom exemplo pessoal de respeito às medidas recomendadas à população.
O padre Julio Lancellotti vem sofrendo sucessivos ataques por causa de sua atuação com moradores de rua. O último partiu da primeira-dama do estado, Bia Doria. Por que ele recebe tantas críticas após décadas de trabalhos sociais importantes?
Ninguém está isento de críticas, contanto que sejam razoáveis e ajudem a melhorar as coisas. Porém críticas difamatórias e destruidoras da pessoa são injustas e machucam. Padre Julio dedica-se aos moradores de rua em São Paulo, sobretudo na área central, e se envolve de corpo e alma numa situação que muitos reconhecem como problemática e até escandalosa para nossa cidade, mas poucos querem abraçar e enfrentar seriamente. As críticas dirigidas a ele são dirigidas acima de tudo aos pobres. Quem fica do lado dos moradores de rua sofre com eles, inclusive a rejeição social e moral. Bom seria se muitos abraçassem seriamente a causa dos moradores de rua em nossa metrópole, buscando soluções eficazes em vários níveis de responsabilidade e ação.
A Campanha da Fraternidade deste ano (“Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor”) gerou polêmica nas redes sociais, após críticos dizerem que o texto-base estava ideologizado, ao reprovar a negação da ciência na pandemia. A polarização ideológica atinge até campanhas que têm como objetivo levar reflexão e unir as pessoas.
A Campanha da Fraternidade, bem-aceita e bem-sucedida por décadas, vem recebendo críticas de vários grupos nos anos mais recentes. Ela pode ser sempre aperfeiçoada e as críticas fundamentadas são bem-vindas e precisam ser levadas a sério. O que se tem observado, no entanto, são campanhas para o descrédito da campanha. Atrás de várias críticas estão divergências quanto à compreensão da Igreja e sua atuação na esfera social e pública. No entanto, a Campanha da Fraternidade segue propondo questões importantes sobre a presença cristã na vida social, que mereceriam acolhida e atenção, em vez de “campanhas contra a campanha”.
Recentemente, o senhor tomou a vacina. Qual a sensação?
Sim, tomei a primeira dose. Tenho 71 anos. A sensação é de alívio parcial, pois ainda falta a segunda dose. Continuo me cuidando.
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Publicado em VEJA São Paulo de 07 de abril de 2021, edição nº 2732