Bairros de periferia paulistanos trazem surpresas
Uma ilha, alguns macacos, uma igrejinha centenária e outras surpresas para quem segue de ônibus até os extremos de São Paulo
A cara de São Paulo nos bairros de periferia tem um pouco daquilo que os paulistanos que nunca foram lá imaginam ter. Casas de alvenaria amontoadas no morro. Conjuntos habitacionais. Brechós e lojas de produtos nordestinos. Crianças jogando futebol. Carros velhos. Paredes grafitadas. Picolés vendidos a 50 centavos. Escuridão (e medo) na madrugada. Não dá para resumir, no entanto, a vida nesses bairros aos clichês. Uma viagem de ônibus até as paradas finais mais distantes do centro revela surpresas como a Ilha do Bororé, na Represa Billings, interligada por balsa ao bairro do Grajaú. Ali prevalece o clima de cidade do interior, reforçado pela igrejinha centenária consagrada a São Sebastião. No pólo oposto, na Zona Norte, o ponto de ônibus mais longínquo fica dentro dos limites da Serra da Cantareira, próximo à entrada do núcleo de visitação Engordador, mantido pelo governo estadual. Lá existe uma área de piquenique rodeada por verde e quedas-d’água. Freqüentemente, macaquinhos sauás e bugios dão o ar da graça. O cenário idílico, infelizmente, contrasta com os casebres que se multiplicam sem estrutura pela encosta ao longo do caminho. “Nos últimos vinte anos, São Paulo cresceu muito nas periferias e perdeu moradores no centro”, afirma Nadia Somekh, diretora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie e ex-presidente da Empresa Municipal de Urbanização (Emurb). Enquanto a população da periferia aumenta 3% ao ano, os bairros centrais perdem 1,5% de seus moradores. “O sistema de transporte não foi preparado para comportar essa pressão.” O resultado desse processo é o que se observa com os dados da SPTrans, a empresa que faz a gestão das 1 314 linhas municipais: para chegar aos pontos mais distantes do centro, perdem-se no trajeto até duas horas e quarenta minutos sacolejando no ônibus. É o preço do isolamento das classes mais pobres. Agora São Paulo precisa olhar mais longe e decidir como quer crescer.
Depois da balsa, uma São Paulo rural
Os passageiros sobem no microônibus 6L11, que parte do terminal Grajaú, e cumprimentam o motorista pelo nome:
– Oi, tio! – diz o garoto de uniforme escolar.
– Como vai, seu Paulinho? – pergunta a moça.
Um deles puxa papo e conta que foi ao Hospital das Clínicas pela manhã. Levou quase três horas para chegar e não conseguiu fazer todos os exames pedidos pelo médico. Resultado: terá de refazer todo o caminho no outro dia.
– Paciência – recomenda o condutor.
Pressa e aflição não combinam com o ritmo da Ilha do Bororé, no meio da Represa Billings, cuja travessia é feita por meio de duas balsas. As chácaras, a igrejinha, os cavalos, os cachorros vira-latas… Tudo ali remete ao passado e à vida rural. “Sabia que até pouco tempo atrás nem pão francês se encontrava para vender aqui?”, pergunta o caseiro Geraldo Batista. “No café-da-manhã, as pessoas tomam leite fresco da vaca e comem cuscuz.”
A interligação da Ilha do Bororé com o terminal Grajaú é feita por meio de quatro ônibus, dois deles micros, que repetem o percurso de ida e volta ao menos vinte vezes por dia. A balsa funciona direto, no sistema 24 horas. Só o condutor Paulo Pereira Santos faz cinco viagens por jornada de seis horas. “Espero em média dez minutos para embarcar e outros cinco para cruzar a represa”, conta. Nos fins de semana, dependendo do sol, o tempo de travessia pode triplicar. Muita gente procura a Ilha do Bororé para fazer programa de verão: nadar, acampar e assar churrasco. As águas da Billings têm recebido bandeira verde para o banho nas avaliações da Cetesb. Uma pena que os visitantes não façam sua parte pelo meio ambiente, pois há sempre lixo jogado às margens da represa.
A partir de 2010, a Ilha do Bororé será cortada por uma ponte de 1 800 metros de extensão e colunas de 100 metros. A obra, em execução desde maio de 2007, faz parte do trecho sul do Rodoanel, que vai unir as rodovias Imigrantes, Anchieta e Régis Bittencourt. Para os moradores que imaginam que o sossego dali está ameaçado pelo Rodoanel, a Dersa garante que não. O traçado não prevê entradas e saídas de Bororé no anel viário. É inegável, porém, que a ilha ficará ainda mais curiosa quando uma grande ponte figurar em sua paisagem.
Favelização ameaça animais e nascentes
Para os paulistanos que curtem ficar em contato com a natureza, é um refúgio e tanto. A reserva de Mata Atlântica e a abundância de água da Serra da Cantareira conservam o ar mais puro e a temperatura mais amena que no resto de São Paulo. Os termômetros registram até 7 graus de diferença em relação à Praça da Sé. Macacos podem ser vistos ali com tanta facilidade que dois deles posaram para uma foto, no dia em que a reportagem de Veja São Paulo viajou em direção à parada de ônibus mais longínqua da Zona Norte. Tal ponto fica 500 metros após a entrada do Núcleo Engordador do Parque da Cantareira, onde os animaizinhos da espécie sauá foram vistos. Uma das curiosidades encontradas no núcleo é a bomba-d’água movida a vapor usada no início do século XX para abastecer a cidade. Durante a semana, o lugar é aberto apenas para visitação de estudantes. Aos sábados, domingos e feriados, aventureiros em geral caminham por suas trilhas e, não raro, terminam o passeio com um piquenique. Outras opções de entretenimento como clubes, haras e restaurantes também atraem visitantes. Os mais atentos notam a presença de várias favelas, incrustadas nos morros que caracterizam a região. De acordo com números da Fundação Seade, órgão de pesquisa ligado à Secretaria Estadual de Planejamento, 220 000 pessoas vivem em moradias precárias nos quatro distritos da Serra da Cantareira: Brasilândia, Cachoeirinha, Mandaqui e Tremembé. “Comparando a foto aérea de hoje com a de dez anos atrás, a mancha urbana cresceu mais de 100%, avançando sobre a floresta”, afirma a arquiteta Tereza Herling, professora de urbanismo da Escola da Cidade. A principal conseqüência dessa devastação deve ser o aumento das enchentes na Zona Norte e o assoreamento de nascentes que afluem para o Rio Tietê. É um perigo. As águas da Serra da Cantareira são fundamentais para a vida da cidade.
Quarenta mil famílias e pouca diversão
Visto do alto, o bairro de Cidade Tiradentes é um mar de conjuntos habitacionais. Em apenas trinta anos desde o início do loteamento, 40 000 famílias se instalaram ali. Gente que sustenta os filhos com dois salários mínimos por mês (36% estão nessa faixa de renda, segundo uma pesquisa recente do Datafolha) e enfrenta duas horas de trânsito para chegar ao trabalho. As crianças e os jovens têm poucas opções de lazer. Empinam pipa e disputam os balanços do parquinho à beira da Avenida dos Metalúrgicos, a principal do bairro, onde ficam as escolas, o comércio e o terminal rodoviário. Nessa mesma via está o campinho do Aliança Futebol Clube. À tarde, ele é usado para treino de futebol de aspirantes. Atrai tanta gente que seria possível formar quatro times de meninos de 9 a 14 anos. Essas áreas de lazer foram construídas na última década. “Levou muito tempo até que se percebesse que um bairro não pode ter apenas moradia”, afirma a antropóloga Paula Miraglia, diretora do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito.
O comércio em Cidade Tiradentes também demorou a se estabelecer. Tanto que até hoje não existem agências bancárias no pedaço. “O fato de a região ter sido disputada por duas facções criminosas, o Comando Vermelho e o PCC, sempre afastou investidores”, afirma Paula. A queda no número de homicídios mostra que a vida no extremo da Zona Leste melhorou. Em 2001, a delegacia de polícia do bairro (54ª DP) registrou 143 homicídios dolosos. No ano passado, esse índice despencou para 29. Um dos resultados: com a redução da criminalidade, redes como Casas Bahia e o supermercado CompreBem se instalaram ali.
Um bairro de empreendedores
A grande maioria das pessoas que moram nas periferias perde, diariamente, quatro horas dentro do ônibus para ir e voltar do trabalho. Muitos compram carro para acelerar o deslocamento. No bairro Jardim João XXIII, no extremo oeste de São Paulo, quase na divisa com Osasco, esse é exatamente o caso. Os ônibus saem dali lotados e seguem até o Vale do Anhangabaú quase em linha reta pela Rodovia Raposo Tavares, pelas avenidas Professor Francisco Morato e Rebouças e pela Rua da Consolação. Ainda que haja corredores exclusivos para ônibus em boa parte do caminho, o trajeto inteiro leva uma hora e 45 minutos. Assim se justifica o fato de 46% das famílias, com renda per capita de 394 reais, terem investido em um automóvel.
Uma peculiaridade da região, no entanto, é a quantidade de pessoas que decidem fazer a vida por lá e empreendem algum negócio na garagem de casa. Tome-se o caso da costureira Marta Carvalho, que montou um brechó num puxadinho feito por seu marido. Ela recebe roupas em consignação de vizinhos e divide o lucro da venda meio a meio. “O que faz mais sucesso são saias compridas e sapatos fechados”, conta. “Minha clientela é composta principalmente de mulheres que passam pelo brechó a caminho de uma das seis igrejas evangélicas do entorno.” O padeiro João da Silva também decidiu abrir um negócio próprio para aumentar a renda. Após virar a noite assando pães, abre a portinha de sua venda de produtos do Norte, onde se encontram desde charque e pimenta até cachimbo. “Tenho conseguido faturar 80 reais por dia”, calcula. “É bom, mas preciso ganhar mais, pois pago 450 reais de aluguel.” Pelo número de portinhas onde se lê “Cabeleireiro unissex”, percebe-se que esse é o filão mais disputado do bairro. O salão de beleza onde a manicure Daniela Santos trabalha fica numa ruazinha de 300 metros e enfrenta a concorrência de outros dois. “De sexta a domingo, chego a fazer pés e mãos de oito clientes”, diz ela, confiante em sua habilidade com o esmalte e a lixa. O serviço custa 15 reais. “Pretendo fazer um curso de podologia e em breve abrir minha clínica no bairro.”