A perigosa aliança da fé
Com disposição para o toma lá dá cá com igrejas, Celso Russomanno puxa cordão de candidatos que protagonizam uma mistura sem precedentes de política e religião
Logo após a Proclamação da República, com a Constituição de 1891, o Brasil tornou-se um estado laico. Ou seja, aqui não existe religião oficial. Por extensão, política e religião são no país coisas separadas. Em qualquer lugar do mundo, sua mistura é explosiva, deletéria e arriscada. Na atual campanha para as eleições municipais de São Paulo, essa indesejável combinação chegou a um ponto preocupante. Ninguém, candidato a prefeito ou vereador, foi tão longe nesse perigoso jogo quanto o surpreendente líder nas pesquisas de intenção de voto para prefeito, Celso Russomanno.
Quando questionado a respeito de suas relações íntimas com vários líderes religiosos da cidade, em especial com a Igreja Universal do Reino de Deus, de Edir Macedo, dono da Rede Record — cujos programas o tornaram uma figura notória — e responsável pelo controle do nanico PRB, o partido que o lançou candidato, Russomanno tem uma resposta pronta. “A eleição é para prefeito, e não para papa”, costuma dizer. Sua campanha, no entanto, mostra uma prática bem diferente do discurso, misturando sem nenhum disfarce política e religião no mesmo palanque. Nos últimos meses, ele cumpriu uma extensa agenda ecumênica de encontros, indo de uma mesquita no bairro do Brás ao Santuário Mãe de Deus, do padre Marcelo Rossi.
+ Os eleitos da igrejas: saiba como está a divisão de apoios
+ Odilo Scherer: “Não se pode usar religião para voto de cabresto”
Numa visita realizada no feriado de 7 de setembro ao Ministério Santo Amaro da Assembleia de Deus, o pastor Marcos Galdino de Lima pediu durante um culto: “Quero que cada um de vocês leve esse nome [Russomanno] para mais 100 pessoas”. Na semana passada, ele fechou um pacto importante com a Igreja Renascer em Cristo. Com cerca de 50.000 seguidores na capital, ela é uma das mais influentes do meio evangélico graças à presença na televisão e à organização do principal evento gospel do país, a Marcha para Jesus, que, segundo estimativas, reuniu 335.000 pessoas em julho, na Zona Norte.
No acordo, ficou acertado que a bispa Sonia Hernandes, responsável pela igreja ao lado do marido, Estevam, faria no sábado (22) a primeira manifestação pública da aliança, durante o evento Encontro de Mulheres, na Zona Leste, diante de milhares de fiéis do sexo feminino. O vice da chapa de Russomanno,Luiz Flávio Borges D’Urso, trabalhou como advogado dos bispos quando eles foram detidos em 2007 nos Estados Unidos com 56.000 dólares não declarados à imigração — parte das cédulas estava escondida dentro de uma “Bíblia”.
+ Os sete pecados da Câmara Municipal
+ Candidatos à prefeitura vão de shows de forró a missas atrás de votos
Alianças desse tipo durante as campanhas estão longe de representar uma novidade. Outros candidatos também as fazem, mas nada que se compare às de Russomanno. O tucano José Serra é apoiado por duas importantes vertentes evangélicas: a Igreja Mundial do Poder de Deus, do apóstolo Valdemiro Santiago, e a Convenção Geral das Assembleias de Deus, que agrega cerca de 400.000 fiéis. No dia 14, durante um culto dessa última igreja na Zona Leste, o pastor Severino Pedro da Silva declarou, ao lado de Serra: “Deus ilumine os corações para votar nesse grande homem”.
Gabriel Chalita, do PMDB, costurou o endosso com católicos carismáticos e grupos evangélicos como a Sara Nossa Terra. Já o petista Fernando Haddad recebeu em agosto homenagens da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil, que agrega a maior parte das cerca de dez mesquitas existentes na capital. A igreja do padre Marcelo Rossi também virou ponto de romaria. Além de Russomanno, passaram por lá Chalita e Serra. “Lamentavelmente, o estado laico perdeu a força”, avalia o historiador Boris Fausto, do departamento de Ciência Política da USP. “Hoje, o mesmo pastor que exorciza o demônio promove um candidato. É surreal.”
“Não deixa de ser irônico — e isso, na verdade, reflete o nível rasteiro desta campanha eleitoral — o fato de que Celso Russomanno, candidato pelo partido comandado pela Universal, faz questão de ostentar sua condição de ‘católico fervoroso’”, chamou atenção na semana passada um editorial do jornal “O Estado de S. Paulo”. Dias antes, a temperatura do embate cristão havia subido. No domingo (16), um comunicado assinado pelo cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, foi lido em várias missas da capital. O documento afirmava que “a manipulação política da religião não é um benefício para o convívio democrático e pluralista e pode colocar em risco a tolerância e a paz social”. Lembrava ainda que a Igreja Católica fora “atacada e injuriada, de maneira injustificada e gratuita, justamente num artigo do chefe de campanha de um candidato à prefeitura de São Paulo”.
+ Até onde vai o fôlego de Celso Russomanno
Um texto do ano passado, republicado recentemente nas redes sociais, motivou a manifestação. Veiculado no blog de Marcos Pereira, bispo da Universal, presidente do PRB e atual coordenador da campanha de Russomanno, o artigo em questão criticava duramente o chamado “kit gay”, material didático que o Ministério da Educação, na época sob a gestão de Haddad, planejava distribuir nas escolas públicas para combater a homofobia (na visão dos evangélicos, o tal material, na verdade, fazia apologia ao homossexualismo).
Por causa da polêmica, a iniciativa do MEC acabou sendo abortada. Pereira não apenas repudiou na ocasião o tal “kit gay” como atribuiu a ideia à Igreja Católica. Reavivado agora com óbvios interesses eleitorais, o caso provocou a reação veemente de dom Odilo (clique e leia a entrevista). No desdobramento do episódio, Russomanno tentou em vão agendar, no início da semana passada, um encontro com o cardeal-arcebispo para pôr panos quentes na história. Diante da negativa, ele decidiu não comparecer ao debate promovido pela Arquidiocese com os candidatos à prefeitura na última quinta (20).
Procurado por VEJA SÃO PAULO para falar sobre a mistura entre política e religião na campanha, Russomanno não quis se manifestar. Outros concorrentes, como José Serra, defendem uma aproximação com qualquer setor da sociedade, incluindo as igrejas. “É natural e ocorre em todos os países”, afirma o tucano, que faz em seguida uma ressalva. “O caso da Universal é diferente de uma simples manifestação de simpatia, pois ela e o candidato do PRB estão juntos fazendo a campanha.”
A corrida em busca de fiéis está intimamente ligada ao esforço dos candidatos em aumentar seu rebanho eleitoral. Nesse universo, os evangélicos vêm recebendo atenção cada vez maior dos políticos devido ao seu crescimento acima da média e à obediência que boa parte dos fiéis demonstra diante dos pedidos dos pastores. Entre 1991 e 2010, o número de seguidores saltou de 232.000 para 2,5 milhões, o equivalente hoje a aproximadamente 20% da população paulistana.
Na divisão das intenções de voto segundo a religião dos eleitores, Russomanno se destaca entre os evangélicos pentecostais, fatia de religiosos que tem a Universal como uma das maiores igrejas na metrópole. De acordo com o último Datafolha, o candidato do PRB possui 28 pontos porcentuais a mais que Serra no segmento (veja o quadro abaixo), seu melhor desempenho nessa faixa desde o começo da campanha. Quando se considera o total de eleitores, porém, essa distância cai pela metade (14 pontos).
A influência dos pastores, que têm um peso considerável no voto evangélico, está entre as principais explicações para o fenômeno. Segundo o Datafolha, cerca de 30% dos praticantes dizem seguir a recomendação de seus líderes religiosos. “As pesquisas indicam que o grupo já definiu claramente um candidato”, afirma Mauro Paulino, diretor do instituto. Num pleito bastante equilibrado como o atual, a questão pode ser decisiva. “No segundo turno, momento em que a briga será ainda mais apertada, o voto religioso pode representar instantaneamente um passaporte para o céu”, diz o cientista político Antonio Lavareda.
Buscar apoio dos mais diferentes segmentos de eleitores faz parte do jogo democrático. “O problema é quando se estabelece um esquema de toma lá dá cá em troca das adesões”, comenta o cientista político Rubens Figueiredo. “Alguns dos compromissos assumidos pelos candidatos podem resultar em ações prejudiciais à cidade.” Não raro o apoio sai caro para os partidos. “Há pastor que pede 5 milhões de reais para recomendar um candidato”, diz um dos prefeituráveis.
Oficialmente, a Renascer caiu no colo de Russomanno porque seus líderes gostaram das propostas do PRB nas áreas de educação e saúde. Pura balela. Durante as negociações com a Renascer, os responsáveis pela campanha do PRB receberam uma lista de reivindicações dos bispos. A principal envolve a regularização de templos na cidade. A igreja tem interesse especial na filial da Avenida Lins de Vasconcelos, no Cambuci. Ali, o teto desabou em janeiro de 2009, matando nove pessoas. A prefeitura emitiu no mesmo ano uma autorização para a reconstrução. Na sequência, porém, a obra foi embargada após ser considerada irregular pela Justiça. O caso segue em discussão até hoje.
Esse tipo de problema é comum a outras igrejas. A Mundial, por exemplo, recorreu à Câmara Municipal para regularizar uma unidade na Zona Sul que abocanhou um traçado de rua da região. Nas fileiras da Universal, a troca de interesses está clara para fiéis como a advogada Marinalva Demarchi, de 55 anos. “Como estamos construindo o Templo de Salomão, no Brás, a vitória do Russomanno pode ser positiva”, diz ela, referindo-se ao prédio que será a principal unidade da igreja, “maior que a Catedral da Sé e mais alta que o Cristo Redentor”, conforme a propaganda da turma de Edir Macedo. A conclusão da obra está prevista para 2014.
No Poder Legislativo, as igrejas também tentam ampliar seus tentáculos. Hoje, os evangélicos representam menos de 20% do total de 55 vereadores. “Não chegamos a ser uma bancada, como existe na esfera federal”, explica Carlos Apolinário, do PMDB, o mais conhecido do grupo. “Estou fora da campanha, mas certamente o número de evangélicos crescerá, até porque somos 22% da população e essa representatividade não se reflete na Casa.” Dias atrás, o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus — Vitória em Cristo, fez uma advertência em seu programa de televisão exibido em várias emissoras, como a Band, contra partidos que usam os múltiplos candidatos nanicos das igrejas para engordar sua legenda e empurrar os caciques rumo à vitória. “Votem em quem tem chance de se eleger”, apelou.
A aspirante a vereadora Vania Placido, do PRP, da coligação de Celso Russomanno, diz sentir isso na pele. Conta que aderiu ao partido a convite da Universal, que teria financiado seus 100.000 santinhos, apesar da promessa de 300.000 unidades. “Os candidatos que são pastores da igreja têm tempo de TV e material maior de divulgação, como cartazes e faixas, por isso vão ter mais chance”, reclama ela. “Estou me sentindo enganada.”
A lei proíbe a transformação de espaços religiosos em comício. Pedir aos fiéis voto para um candidato nos cultos, por exemplo, pode render multa de 2.000 a 8.000 reais — vale dizer que nenhum aspirante à prefeitura foi autuado até agora pelo Tribunal Superior Eleitoral. No domingo (16), durante culto de duas horas e meia ministrado por Edir Macedo no templo-sede da Universal, em Santo Amaro, o bispo fez críticas à imprensa, rezou e pediu dízimo. Não tocou em política. Na saída, porém, o negócio ficou escancarado: dez rapazes balançavam bandeiras com a imagem de Russomanno, enquanto os cerca de 6.000 presentes recebiam santinhos do candidato e de pastores da Universal que tentam a vaga de vereador.
Ao identificar a presença de repórteres de VEJA SÃO PAULO, vários obreiros da igreja tentaram confiscar o material do fotógrafo. “Fica ruim saírem na imprensa essas coisas de campanha aqui na nossa porta”, justificou um deles. “Assim vai nos prejudicar.” Os repórteres só conseguiram continuar o trabalho após solicitar a presença da Polícia Militar.